top of page

A YMAA - Linhagem Histórica - Mestre Yang Jwing-Ming

| uma entrevista ao Dr. Yang, Jwing-Ming  | 1ª parte por Michael A. Demarco, M.A.

«journal of asian martial arts», vol. 12,  número 2, 2003

 

| introdução

 

O nome do Dr. Yang, Jwing-Ming (楊俊敏) tornou-se muito conhecido por causa das suas primeiras publicações sobre o Taijiquan (太極拳). Apesar de alguns erros editoriais nos seus trabalhos iniciais (prováveis num nativo chinês que era principiante na área das publicações), os seus volumes pioneiros ofereceram visões e experiências únicas numa arte que cativou milhares de pessoas. Os seus trabalhos partilharam informações que, na língua inglesa, não se encontravam em mais lado nenhum, apresentando detalhes sobre a história do Taijiquan, teorias e práticas que garantiram que os seus livros se tornassem referências clássicas da arte.

 

Como é que o Dr. Yang encontrou essas informações apresentadas nos seus livros? Quem foram os seus professores e quais os seus estilos? Estas questões aprofundaram-se ainda mais quando o Dr. Yang começou a publicar mais livros, não apenas sobre o tema de Taijiquan, mas também sobre o estilo Punho Longo de Shaolin (少林長拳), Grou Branco (白鶴拳), trabalho da energia interna (Qigong, 氣功) e técnicas de luxação (Qin Na, 擒拿). As suas obras continuaram a aumentar, abrangendo outros aspectos das artes marciais chinesas, incluindo a espada de Taiji (太極劍), empurrar com as mãos (Tuishou, 推手), análises profundas sobre os clássicos de Taijiquan e o exame das suas teorias. Mais obras foram publicadas com outros autores sobre os tópicos de Xingyiquan (形意拳) e Baguazhang (八卦掌), continuando com a publicação de uma série de livros de diversos autores e sobre tradições marciais chinesas e não chinesas.

 

Desde a publicação do seu primeiro livro em 1984, o Dr. Yang tornou-se uma figura de proa responsável pela influência de uma grande parte da pesquisa das artes marciais no mundo. O seu trabalho académico só tem paralelo com a sua preenchida agenda de seminários nos E.U.A e noutros países. Muitos dos seus alunos de longa data tornaram-se instrutores de mérito reconhecido.

 

A entrevista que se segue, a primeira parte de uma série de duas partes, foi realizada com o intuito de ir para além dos detalhes habitualmente disponíveis sobre um dos mais reconhecidos instrutores de artes marciais. Esperamos que as páginas seguintes possam fornecer alguma luz sobre a atmosfera histórica do ensino e estudo das artes marciais em Taiwan durante o período de 1950 a 1960. A primeira parte da entrevista relata a história pessoal do Dr. Yang durante este período. A segunda parte relata o seu envolvimento na prática das artes marciais e o trabalho desenvolvido nas publicações.

 

Tentámos manter a norma dos nomes chineses no nosso jornal seguindo o sistema Pinyin de normalização. Na configuração habitual, o nome do Dr. Yang é escrito na forma “Yang Jwing-Ming.” Porém na norma Pinyin, este deve ser escrito na forma “Yang Chuanmin.” Comprometemos a escrita para a forma “Yang Jwingming” pois o sistema Pinyin não possui hífenes e o nome ainda se mantém reconhecível.

 

| entrevista – história pessoal

 

Dr. Yang, conheço as suas obras desde que publicou o seu primeiro livro sobre Taijiquan. Muitos conhecem a sua formação: cresceu em Taiwan, frequentou a universidade nos E.U.A., escreveu sobre artes marciais e eventualmente criou a sua própria editora.

 

A biografia que apresenta nos seus livros é muito interessante mas gostaria de conhecer mais pormenores, pois todos os aspectos parecem, de certa forma, emergir nos seus ensinamentos e publicações, influenciando muitos praticantes de artes marciais. Por esta razão, gostaria de começar esta entrevista com uma pergunta sobre os seus tempos de criança e crescimento no condado de Xinzhu (新竹).

 

Pode dizer-nos exactamente onde é que nasceu? Em que cidade ou aldeia? Quais as recordações mais fortes que possui dessa época e que actualmente transparece nas suas recentes obras?

 

Nasci a 11 de Agosto de 1946, na aldeia de Yang, situada perto da cidade de Nanliao (南寮) no condado de Xinzhu – na costa noroeste de Taiwan. Viviam aproximadamente seiscentas a oitocentas pessoas com o apelido de Yang numa aldeia perto de Hushan (虎山, Montanha Hu), por isso eram habitualmente chamadas de “Hushang Yang”. Esta aldeia estava localizada perto do aeroporto militar de Nanliao construído pelos japoneses. Taiwan foi controlado pelo governo japonês de 1895 a 1945.

 

Na II Guerra Mundial, a guerra entre a China e o Japão durou oito anos de 1937 a 1945. Na segunda metade da guerra, os E.U.A. entraram nela e começaram a bombardear as bases militares japonesas situadas em Taiwan. Como Hushan se localizava perto do aeroporto, quase toda a aldeia foi destruída e cerca de um terço dos seus habitantes com apelido Yang foram mortos no bombardeamento.

Nasci um ano depois do final da guerra. Por causa da tristeza originada pela guerra, muitos dos meus parentes decidiram mudar para a cidade de Xinzhu e começar uma vida nova. Quando tinha cerca de dois anos, a minha família mudou-se também para essa cidade.

Não tenho muitas memórias da aldeia de Hushan Yang. As poucas memórias que tenho relacionam-se com as minhas visitas aos parentes que ainda lá viviam ou na participação em casamentos. Contudo, ainda me recordo da minha avó indicar o local onde o meu avô construiu doze edifícios com todas as suas poupanças para que os seus filhos lá pudessem viver, o poço onde as pessoas iam buscar água, a casa onde viviam, etc. Tudo isto foi destruído pelos bombardeamentos o que causou um ataque de coração fatal ao meu avô. Não cheguei a conhecer o meu avô. Tudo o que sei dele foi contado pela minha avó e através de umas poucas fotografias. Como era muito triste regressar à aldeia, a minha família mudou-se.

 

A memória mais antiga que tenho da cidade de Xinzhu é da fome que se estava a espalhar. Quando tinha três anos (1949), o general Jiang Kaishek (蔣介石,Chiang Kai-shek) refugiou-se em Taiwan depois de ter sido derrotado pelos comunistas da China. Entre 1945 a 1949 Taiwan estava um caos. Porém, quando os militares de Jiang Kaishek chegaram a Taiwan, a situação piorou ainda mais. O maior problema foi causado pelos milhares de civis que acompanharam a fuga do general Jiang para Taiwan, isso fez aumentar em um terço a população de Taiwan. De repente, disparou a quantidade de população faminta e sem leis. Naquela altura, a intenção de Jiang era contra-atacar a China. Quando a guerra da Coreia começou em 1950, deu a Jiang uma oportunidade de contra-atacar a China.

 

Todos os esforços do governo de Jiang se concentravam nos preparativos de defesa e de ataque. Esta situação caótica espaireceu gradualmente depois da Guerra da Coreia, quando Jiang reconheceu que atacar a China era praticamente impossível.

Tal como as outras crianças, recordo a procura dos metais, garrafas e latas para depois os vender e conseguir algum dinheiro para comprar comida. Quando tinha cerca de nove anos, o meu pai foi posto numa prisão militar por possuir uma arma comprada a um amigo japonês que tinha regressado ao Japão no final da guerra. Lembrem-se de que a situação na altura era caótica. As pessoas procuravam formas de se protegerem a si próprias e às suas famílias. O meu pai foi suspeito de ser um espião comunista. Depois de quase um ano de investigação ele foi libertado da prisão militar. Lembro-me de lhe levar um pouco de sopa de arroz (era tudo o que tínhamos) na prisão militar perto da minha casa. Só lhe era permitido estar de cuecas e sentar na jaula cujas dimensões não lhe permitiam estar de pé nem deitado. Era com lágrimas que o via engolir a sopa de arroz.

 

O melhor entretenimento que as crianças tinham era ir ao mercado, ou a uma rua movimentada, ver as actuações dos artistas marciais – em especial os que vieram da China com Jiang  Kaishek. Eles actuavam e vendiam ervas para ganharem algum dinheiro do público. Ficava espantado com as suas habilidades marciais e pelas histórias que contavam. Acredito que isso foi o que primeiro me influenciou a enveredar pela carreira marcial.

 

Nos finais dos anos 50 surgiram os filmes a preto e branco mas eram demasiados caros para os conseguir ver, especialmente porque a minha família tinha nove filhos. Fiquei muitas vezes em frente da bilheteira a pedir aos cavalheiros e às senhoras que me levassem para dentro como seu filho. Os filmes que mais apreciava eram os filmes marciais. As histórias eram excitantes e as habilidades para além da minha crença. Como sabem, tal como os filmes actuais, muitas dessas habilidades eram exageradas, porém eles preenchiam a minha imaginação.

 

Como é que a sua família foi para lá viver? O que faziam como meio de sustento? Tem parentes na China?

 

A minha família acompanhou a retirada do general Zheng Chenggong (鄭成功) do condado de Jinjiang (晉江), província de Fujian (福建), para Taiwan no final da dinastia Ming (1644). Depois disso, a China foi tomada pelos Manchus que reinaram até 1911. Mesmo que tivesse parentes na China, não saberia reconhecê-los porque já passaram mais de trezentos anos.

 

Os seus antepassados, em particular os seus avós, influenciaram o seu estudo das artes marciais?

Nasci dois anos depois da morte do meu avô. Só sei que ele era um académico e não um artista marcial. A minha avó, tal como todas as mulheres chinesas da altura, cuidava somente a família. Naquela altura, existiam poucas mulheres praticantes de artes marciais na aldeia de Yang. Quando tinha quinze anos, disse à minha avó que queria aprender artes marciais. Ela respondeu que antes da guerra se praticavam artes marciais na aldeia de Yang. Uma das minhas tias treinava Palma de Areia de Ferro. Um dia, uma casamenteira veio falar com ela para lhe arranjar um casamento. Com a mão esquerda, a minha tia deu uma palmada no canto da mesa que estava à sua frente e o canto desapareceu. Então ela disse à casamenteira que casaria com alguém que conseguisse fazer o mesmo. A avó disse que nunca encontraram alguém que pudesse fazer o mesmo.

 

Por favor, conte-nos um pouco sobre os familiares que estavam ao seu redor durante a sua infância. Estava algum deles envolvido nas artes marciais?

 

Quando era criança, a minha família era formada pela minha avó, meu pai, minha mãe e cinco filhos. Além disso, havia também a segunda mulher do meu pai e os seus quatro filhos. A única pessoa que também praticou com o meu mestre de Grou Branco durante dois anos, foi o meu irmão imediatamente mais novo (ele é agora dentista). Um outro que não era muito próximo da minha família, era o meu tio que vivia no Japão. Quando ele veio visitar a minha avó, já sabia que eu estava a aprender Grou Branco com o Grão-mestre Cheng Gingsao (曾金灶). Depois de eu os ter apresentado, ele e o Grão-mestre Cheng ficaram bons amigos. O meu tio aprendeu algumas técnicas com o meu mestre e comigo. O meu pai tinha aprendido um pouco de Kendo (técnicas de sabre japonês) e Judo quando estudou no liceu japonês em Taiwan. Estas duas artes marciais eram muito populares no sistema educacional japonês.

Ocasionalmente, explicava-me a teoria e os métodos de treino do Kendo e do Judo. Através disso fiquei com uma ideia aproximada do método de treino japonês, em particular a mentalidade e a disciplina do treino. Porém, continuava adorar as artes marciais chinesas. Uma das razões era porque mais de cinquenta por cento da cultura japonesa foi importada da China. Se quisesse aprender, preferia fazê-lo a partir da fonte original de onde as artes foram criadas.

 

Começou o treino das artes marciais com a idade de quinze anos, mas quais eram os seus passatempos antes deste início?

 

Para a maior parte das crianças dessa época, uma das coisas mais agradáveis era nadar nos riachos. Estes eram realmente límpidos. As crianças podiam apanhar peixes, caranguejos e bivalves, nos riachos, rios e campos de arroz. Isso era também uma fonte de alimentação. Mais tarde, a natação tornou-se mais popular. Começámos a ir nadar nas piscinas porque poderíamos ser mordidos se fossemos nadar ao relento.

 

Gostava também de pescar pois assim tinha tempo para ficar sentado e pensar. Desfrutava de um grande sentimento de paz, em especial no período de guerra entre Jiang Kaishek e a China comunista. Durante os meus anos de liceu, todos se preparavam para serem recrutados e integrados no exército. Sabíamos que se ocorresse uma guerra em grande escala, seríamos provavelmente mortos. Estávamos todos com receio mas fingíamos ser valentes e capazes de aceitar qualquer desafio. Sabíamos bem que estávamos todos com receio. Gostava também de basebol. Era uma nova moda na escola. Gostava de ver o jogo e também de o jogar com os amigos. Para além disto não sei, pois nessa altura estávamos apenas preocupados com a sobrevivência.

 

Que escola frequentou durante os seus anos de adolescência? Trabalhou em part time?

 

Foi no liceu de Xinzhu que fiz a preparatória e a secundária. A escola situava-se na base da Montanha dos Dezoito Picos (十八尖山, Shibajiashan), uma cadeia de dezoito montanhas. De bicicleta, demorava cerca de trinta a quarenta minutos para chegar da escola à minha casa.

 

Não havia muitos trabalhos em part time e quando havia, havia também milhares de pessoas a concorrer para ficar com eles. Foi um dos períodos mais desafortunados da minha família porque para conseguirmos sobreviver, o meu pai criou uma empresa de massa chinesa. Depois da escola tínhamos todos que trabalhar até à meia-noite sem receber. Sendo um negócio de família, tínhamos todos de contribuir para conseguirmos sobreviver. Nesses anos não tive nenhum tempo para me divertir com os amigos ou fazer as minhas actividades favoritas. As notas de todos os meus irmãos foram más porque não tínhamos simplesmente tempo para fazer os trabalhos de casa ou estudar. Felizmente, o negócio entrou em falência ao fim de dois anos. Foi óptimo para mim e para a minha mãe porque pudemos recuperar as nossas vidas.

 

Pode explicar-nos como evoluiu a sua vida depois da idade da escola secundária? Porque se formou em física na Faculdade de Tamkang (淡江大學) e depois na Universidade Nacional de Taiwan (台灣大學)? Tendo iniciado o estudo das artes marciais antes da universidade, como dividia o tempo entre a educação formal e o seu interesse nas artes marciais?

 

Quando estava no terceiro ano do secundário, fui apresentado ao mestre Cheng Gingsao por um colega de turma e iniciei o treino do Grou Branco. Estava somente interessado em aprender artes marciais. Não tinha interesse na escola. Habitualmente, depois das aulas, terminava o mais rapidamente possível os trabalhos de casa. Depois do jantar, por volta das seis horas da tarde, ia a correr para Guqifeng (古奇峰, significando “pico estranho e maravilhoso”) localizado numa das dezoito montanhas. O meu mestre de Grou Branco vivia nessa área. Era difícil chegar lá de bicicleta, especialmente de noite. Não havia luz no caminho. A melhor maneira era ir a caminhar ou a correr pelo estreito caminho montanhoso. A correr, demorava geralmente cerca de trinta e cinco a quarenta minutos para lá chegar.

 

Despendia bastante tempo a praticar artes marciais. Não me preparei para entrar na faculdade. Era um sonho demasiado difícil para ser concretizado por mim. Para conseguir entrar na faculdade, tínhamos de passar no exame nacional de admissão. Havia mais de trinta e cinco mil candidatos do secundário e apenas três mil vagas para a Faculdade. Não estudei muito durante o secundário porque a probabilidade de entrar na faculdade era muito reduzida mas estudei bastante no último ano. Fiquei muito admirado quando descobri que fui uma das três pessoas (numa turma de setenta e dois alunos) a ter passado no exame nacional e sido aceite como aluno de física na Faculdade de Tamkang. Não escolhi física. Preenchi simplesmente o formulário com todas as possibilidades possíveis. Na verdade, naquela altura detestava a física! Era a minha pior disciplina e estava sempre no limiar de chumbar. Enfim, era o meu destino. Fui aceite como aluno universitário e tinha de aprender física.

 

Depois de ter entrado para a faculdade, pensei que era o meu destino. Tinha de fazer o meu melhor e ver se gostava de física. Espantosamente, depois de dois anos comecei a gostar. Gostava da sua lógica e fundação científica. Não havia mentiras na ciência. Tudo o que aprendia era tão verdadeiro. Comecei a compreender que estava a aprender a verdade da Natureza – o Dao. Quanto mais estudava, mais gostava.

 

Antes de terminar o meu quarto ano, estava bastante feliz e era um dos melhores de uma turma de setenta alunos. Fui também um dos nove alunos que passou no exame de admissão para a escola de pós-graduados. Fui aceite por duas universidades: Universidade de Taiwan e Universidade Central. Escolhi a Universidade de Taiwan porque era mais famosa e estava localizada na cidade de Taipei, a "cidade dos sonhos" para muitos nativos de Taiwan. Além disso, poderia continuar o meu treino do Punho Longo com o Mestre Li Maoching (李茂清).

 

Quando estava no liceu, tinha bastante tempo para treinar artes marciais porque não me preocupava com a escola. Mas foi mais difícil depois de entrar na Faculdade de Tamkang e na Universidade de Taiwan. Levei mais a sério os estudos. Durante o ano lectivo, praticávamos três noites por semana no clube de Gongfu e durante os períodos de Verão e do Inverno, voltava a Xinzhu para aprender Grou Branco ou ficava em Taipei para aprender com o Mestre Li Maoching. Praticávamos cerca de seis horas por dia. No Verão não havia muitos trabalhos disponíveis. Por vezes, conseguia encontrar algum trabalho de explicação de física para os alunos do secundário e a maior parte destas explicações eram dadas ao final do dia.

 

Comparando com a actualidade, acredito que a maior diferença está na atitude do treino. Treinávamos arduamente porque treinar era o que mais queríamos. Hoje em dia, a maioria das pessoas treina pelo gozo, sem o profundo compromisso que tínhamos na altura.

 

Conseguia praticar regularmente quando servia na Força Aérea Chinesa? Quais eram os seus deveres na Força Aérea e para onde foi destacado?

 

Estive um ano e seis meses [1971–1972] ao serviço da Força Aérea. Seis meses foram dedicados ao treino básico sobre especialidade de manutenção de radares. Depois de obter o grau de mestrado em física, fui destacado para ser professor de física na Academia Júnior da Força Aérea Chinesa (空軍幼校), localizada em Dapengwan (大鵬灣), Condado de Pingdong (屏東) no sul de Taiwan. O campus era muito bonito e tinha sido uma base naval japonesa.

 

Depois de somente um mês em serviço como professor de física, fui convidado para fazer uma demonstração de artes marciais chinesas na celebração do aniversário do Jiang Kaishek. Estranhamente, dos quarenta professores em serviço na academia, dois deles eram colegas meus que aprendiam artes marciais com o Mestre Li Maoching. Depois da demonstração com esses meus colegas de artes marciais, cerca de duzentos alunos solicitaram ao General que eu lhes ensinasse artes marciais chinesas.

 

Na semana seguinte, o General convidou-me a tomar o pequeno almoço e perguntou-me se podia ensinar os alunos artes marciais chinesas. Seria um trabalho adicional para mim. Sem hesitações, concordei. Assim foi fundado o clube de Gongfu.

 

Tive cento e oitenta e seis alunos na primeira aula. Era impossível ensinar tantos estudantes sozinho. Infelizmente, devido a razões pessoais os meus dois colegas da artes marciais não podiam ajudar com regularidade. Lembro-me que a primeira lição foi o treino da posição do cavalo (馬步, ma bu).

 

Expliquei como era importante esta posição para fortalecer as pernas e desenvolver uma boa raiz nas artes marciais. Dei depois a ordem para agacharem para essa posição e fui embora para o meu quarto descansar. Depois de aproximadamente trinta minutos, voltei e vi que metade dos alunos estavam ajoelhados e a outra metade estavam de pé com as pernas a tremer. Dei a ordem para ficarem em pé e que voltassem amanhã se gostaram do treino. No dia seguinte, apenas setenta e seis alunos compareceram. Contudo, setenta e dois alunos praticaram seriamente durante duas horas todos os dias até ao dia que deixei a Força Aérea e, até hoje, foram os meus melhores alunos de artes marciais que alguma vez ensinei.

 

O espírito de treino deles era muito elevado e progrediram muito rapidamente. Aprenderam tanto em tão pouco tempo que na demonstração final surpreenderam bastante o General e toda a escola. Quando saí, o General condecorou-me com uma das mais elevadas distinções que a escola alguma vez tinha atribuído. Nesse ano aprendi bastante através do ensino e estava bastante feliz. A única tristeza nesse ano foi a morte do meu pai devido a um ataque de coração aos quarenta e sete anos. Eu era o segundo filho da família e o meu irmão mais velho estava a estudar na escola de medicina militar. Era o único que podia suportar a família financeiramente. Sabia que o meu futuro não seria risonho.

 

Em 1974, veio para os E.U.A. para obter o doutoramento em engenharia mecânica na Universidade de Purdue. Naquele tempo, quais eram os seus objectivos profissionais?

 

Eu estava muito entusiasmado por vir aos E.U.A. e sonhava completar o doutoramento e regressar a Taiwan para continuar o treino do Grou Branco e Punho Longo com os meus mestres. Em 1974, antes de partir de Taiwan, fui professor de física na Faculdade de Tamkang quase três anos. Planeava regressar à Faculdade de Tamkang depois de obter o doutoramento. Gostava de ensinar e ver o seu benefício nas pessoas.

Mudei de Física para Engenharia Mecânica porque na Universidade de Purdue, demorava-se em média sete anos a obter o doutoramento em física, enquanto que na engenharia mecânica  era  apenas quatro anos.

 

Durante quanto tempo trabalhou nessa área? O que fazia?

 

Em 1978, obtive o meu doutoramento em engenharia mecânica pela Universidade de Purdue. O meu primeiro filho nasceu também nesse ano e quando a minha mãe veio vê-lo, ela contou-me que o meu mestre de Grou Branco tinha falecido em 1976 devido a um acidente vascular cerebral. O meu mestre não tinha recebido educação escolar e vivia nas montanhas. Não existia comunicação directa entre nós. A única fonte de informação era a minha família. Naquela altura, os telefones não eram vulgares, sobretudo nas montanhas. Quando perguntei à minha mãe porque não me tinha contado as más notícias mais cedo, ela questionou-me sobre o que teria feito se tivesse sabido antes. Não lhe consegui dar uma resposta. Ela sabia que se tivesse recebido a notícia da morte do mestre mais cedo, teria desistido da escola e regressado a Taiwan para o funeral. Do ponto de vista dela, a minha formação em Purdue era mais importante que o funeral do mestre.

 

A minha motivação original para regressar a Taiwan foi para continuar a aprender o estilo Grou Branco. Com a morte do meu mestre, essa razão desapareceu. Estava completamente perdido. Naquela situação, podendo escolher de regressar a Taiwan ou ficar nos E.U.A., preferi ficar nos Estados Unidos por causa do seu ambiente de liberdade. Deste modo, solicitei a residência permanente e enquanto aguardava a resposta fiquei em Purdue como associado de pesquisa pós doutoramento [de 1978 a 1980]. Concorri a vários empregos de engenharia depois de receber o estatuto de residente permanente. O primeiro emprego que tive foi como engenheiro na área de semicondutores pela Texas Instruments de Houston. Por isso, mudei-me para Houston em 1980.

 

Quando a economia teve uma crise em 1982, fui despedido. Isso forçou-me a encontrar outro emprego. Encontrei-o logo na Analog Analysis Company, situada em Massachussetts. Mudei-me para Tewksbury Massachussetts em 1982 e comecei uma nova carreira na engenharia. Porém, depois de dois anos de trabalho, sentia-me bastante infeliz. Compreendi que para se conseguir ser um bom engenheiro, tinha de abdicar da minha vida. A melhor parte da minha vida estava a ser consumida pela companhia. Sentia-me muito infeliz e a minha úlcera regressou. Para além disso, surgiram-me pedras nos rins. Fiquei bastante deprimido.

 

No dia 1 de Janeiro de 1984, pedi a demissão. Acreditava que se era capaz de ganhar dinheiro para a firma, também o seria como sendo independente e sobreviver. Decidi concentrar todos os meus esforços no meu novo sonho: apresentar a cultura chinesa à sociedade Ocidental, em particular nas áreas das artes marciais e Qigong. As razões pelas quais escolhi estas áreas foram: 1) já estava interessado nas artes marciais e no Qigong desde criança; 2) já as tinha estudado e praticado desde os quinze anos e por isso tinha uma boa base para começar e; 3) estas duas áreas já tinham sido introduzidas à sociedade ocidental e estavam em forte expansão. Se tivesse de escolher uma área para sobreviver neste país novo e diferente [os E.U.A.], penso que o Qigong e as artes marciais seriam as correctas.

 

Porque decidiu deixar a carreira de engenharia e fundar a sua escola de artes marciais?

 

Quando estava na Texas Instruments, fui informado do meu despedimento pelo meu chefe ao entrar no escritório pela manhã. Ele acompanhou-me até à minha secretária onde arrumei os meus pertences. Depois conduziu-me ao edifício central onde estavam a ser dispensados centenas de engenheiros ao mesmo tempo. Fiquei tão surpreendido por ver tantos polícias na central, alinhados desde a entrada até à sala de conferência. Fomos todos tratados como criminosos. Tive um sentimento avassalador de injustiça. Porque me tratavam desta forma? Tinha acabado de completar uma missão de trinta e três dias em Singapura a favor da firma. Enquanto lá estive em missão, dormi pouco e senti-me sempre cansado. Quando regressei com os produtos que cumpriam as normas de qualidade da IBM, o negócio ficou fechado. Fiz um bom trabalho para a firma e estava orgulhoso disso. Agora, estava a ser tratado injustamente sem ter feito nada de errado. Porquê? Porque haveria de estudar vinte e três anos para ser engenheiro e depois ser tão insultado? Esta foi a primeira motivação para me tornar independente.

 

Mais tarde, encontrei um emprego numa nova firma, Analog Device de Massachussetts. A situação não era melhor. Era uma firma mais pequena com maior carga de trabalho. A firma esperava que todos os engenheiros trabalhassem horas extraordinárias sem vencimento. Estava sob tanta pressão que a minha úlcera regressou. Antes, quando tinha dezasseis anos, tinha já resolvido este problema praticando Taijiquan. Agora, tinha a úlcera outra vez. O caso piorou na segunda metade de 1983 quando tive pedras nos rins. Era muito doloroso. Quando estava no hospital, comecei a analisar a minha vida e o que queria fazer com ela. Seria a engenharia apropriada para mim? Claramente a resposta foi “Não!” Então como conseguiria sobreviver e suportar uma família com três filhos? Havia uma grande pressão e muita esperança no futuro. Decidi saltar para fora da matriz da engenharia. No primeiro dia de Janeiro 1984 pedi a demissão.

 

Comecei a ensinar artes marciais com apenas quinze alunos e não tinha rendimentos suficientes nem para pagar a renda. As poupanças da família desciam todos os meses. O ano mais difícil foi 1984. Preocupei-me tanto que apanhei uma constipação que se agravou numa pneumonia. A temperatura da minha febre subia e descia. Como não tinha seguro [de saúde], não fui ao médico e tive a pneumonia sem saber. Dois meses mais tarde, um antigo aluno de artes marciais veio visitar-me. Ele tinha terminado os estudos de medicina e trouxe um estetoscópio de casa para averiguar o meu estado. Ele diagnosticou-me a pneumonia e disse que deveria estar morto há já muito tempo. Acredito que a única coisa que me manteve vivo foi o espírito de sobrevivência e o desejo de ver concretizado o meu novo sonho.

 

Depois de compreender o problema, telefonei ao meu irmão, dentista em Taipei, e contei-lhe a minha situação. Uma semana depois recebi os antibióticos enviados por ele. A febre baixou depois de uma semana a tomar os medicamentos. Senti-me de novo bem. A doença não me tinha esmorecido. O meu espírito estava tão elevado e empenhado que não poderia falhar no meu novo sonho.

 

No Outono de 1984, foi publicado o meu primeiro livro auto-editado “Qigong for Health and Martial Arts”. Para conseguir publicá-lo, tive de aprender a fazer tipografia, recortar e colar, tirar e revelar fotografias, e o mais difícil de tudo, a criar o mercado. Fiz tudo isso sem qualquer ajuda. Surpreendentemente, este livro começou a suscitar interesse e, consequentemente, abriu um novo nicho de mercado.

 

Os rendimentos começaram a surgir. Além disso, depois da minha saúde ter melhorado, o meu espírito de ensino fortaleceu-se. Os alunos apareciam num número cada vez mais maior. No ano seguinte, um dos meus alunos, o Sr. David Ripianzi voluntariou-se a ajudar-me a desenvolver o mercado. Como não podia pagar-lhe um salário ele concordou em trabalhar numa base de comissões. O segundo livro foi publicado, o terceiro e assim por diante até à nossa lista actual.

 

 

| uma entrevista ao Dr. Yang Jwingming  | 2ª parte por Michael A. Demarco, M.A.

«journal of asian martial arts», vol. 12,  número 3, 2003

 

Depois de nos ter fornecido algumas informações fascinantes sobre a sua formação, pormenores sobre a família, sobre os estudos e sobre o seu emprego, gostaria de incidir nos seus estudos nas artes marciais. O que o interessou nestas artes? Por favor dê-nos alguns pormenores sobre o seu primeiro professor. Ainda se lembra do vosso primeiro encontro?

 

Sempre senti atracção pelas demonstrações dos artistas marciais provenientes da China Continental quando era criança. Além disso, os filmes de artes marciais alimentavam-me o sonho de vir a ser um super-homem. Além disso, devido às limitações financeiras da minha família, acabava por lutar com quem se risse da minha roupa, a qual tinha sido usada pelo meu irmão – com remendos e buracos em todo o lado. Só tive sapatos quando fui para a escola secundária. Contudo, o que mais me influenciou a aprender artes marciais foi o querer provar que não era um cobarde e que não precisava de ter medo.

 

A situação vivida pelos adolescentes em Taiwan não foi muito diferente da situação americana dos anos 60, pois decorria a Guerra do Vietnam e todos receavam ser recrutados. Em Taiwan era ainda pior porque com a Guerra do Vietnam, reavivou-se a esperança de Jian Kaishek contra-atacar a China Continental. Todos os adolescentes tinham medo de ser arrastados para a guerra, porém não queriam ser vistos como cobardes. Nesta condição, psicologicamente desequilibrada, aprender artes marciais oferecia um sentimento de força e de confiança.

 

O problema não era somente político, pois não era fácil encontrar um professor de artes marciais que quisesse aceitar-nos como alunos. Quase nenhum artista marcial ensinava para obter rendimento. Entre o professor e o aluno, não se estabeleciam relações em que o dinheiro estivesse envolvido. Um professor ensinava porque gostava de ensinar e o aluno praticava porque gostava de aprender. No meu caso, aprendi com três mestres sem sequer pagar um tostão. Pelo mesmo motivo os professores não aceitavam estudantes facilmente. Apenas aceitavam aqueles que fossem empenhados e sinceros. Se não gostavam do estudante, simplesmente expulsavam-no sem dar explicações. Os mestres tinham a absoluta autoridade de fazer o que quisessem.

 

Hoje em dia isso já não acontece. Qualquer pessoa pode encontrar um professor desde que esteja disposto a pagar. O treino faz-se por divertimento e tornou-se um negócio. A relação entre o professor e o aluno é muito superficial. As moralidades marciais não são seriamente realçadas. Os alunos escolhem o professor e o professor suplica para os alunos ficarem e praticarem. Para mim, isso é muito estranho. O mundo ficou do avesso.

 

Fui apresentado ao meu mestre de Grou Branco por um colega do liceu, o Sr. Chen Nianxiong. Não sabia que ele já tinha praticado Gongfu com este mestre durante alguns anos. Como gostava de lutar, um dia ele perguntou-me se gostaria de aprender a lutar correctamente e estudar artes marciais com um mestre. Naturalmente, fiquei muito feliz e excitado com esta novidade.

 

Naquela tarde, depois das aulas, ele levou-me a Guqifeng, o pico da montanha localizado perto do liceu. Quando chegámos, o mestre estava a trabalhar no campo de arroz. Aproximámo-nos dele cuidadosamente por um estreito caminho entre o arrozal. O meu coração batia rápido. Estava excitado e preocupado.

 

Preocupava-me se iria ser aceite ou não. O Sr. Chen apresentou-me relatando a minha vontade de ser um dos seus alunos. Ele olhou para mim e sorriu dizendo em seguida a Chen: “Trá-lo para os treinos de hoje à noite.” – foi o dia mais feliz da minha vida.

 

Nessa noite descobri que era o décimo nono do grupo. O Mestre Cheng já tinha ensinado a outros grupos anteriormente. Como era o mais novo do grupo, tinha de servir o mestre e levar toalhas e água a todos os meus colegas durante as sessões de treino. Nos primeiros seis meses apenas aprendi algumas rotinas e posições de Grou Branco. Ocasionalmente, um dos colegas de treino mais avançado vinha fazer correcções, pontapeando-nos aqui e ali. Os alunos mais novos ficavam realmente felizes e apreciavam bastante quando alguém lhes prestavam atenção.

 

Quase um ano depois, enquanto praticava à noite, a minha úlcera começou a doer. Já tinha este problema desde os nove anos de idade. Fiquei sentado num canto com a face pálida. O mestre aproximou-se e questionou-me, usou os seus dedos para tocar-me na área do pulso e disse-me “Ouvi dizer que o Taijiquan pode ajudar a relaxar os órgãos internos e curar este problema.” Isso significava que ele estava a sugerir que procurasse um mestre para aprender Taijiquan e que me autorizava a estudar com outro professor. Os alunos de hoje devem compreender que, tradicionalmente, seria considerado uma traição se estudássemos com outro mestre sem o consentimento do primeiro mestre.

 

O meu mestre de Grou Branco, o Sr. Cheng Gingsao nasceu no dia 15 de Novembro de 1911 e faleceu no dia 5 de Maio de 1976. Era o segundo rapaz da família Chen e devido a um acordo entre o seu pai e a sua avó, ele foi adoptado pela família de Cheng de modo a transmitir o nome. Apesar do seu pai ser um especialista em Taizuquan e outros estilos que desconheço, não teve oportunidade de aprender com ele.

 

Pois para proteger o segredo do estilo, o mestre geralmente não transmitia o segredo da arte a pessoas fora da sua família. Apesar de mais tarde ele ter aprendido um pouco de Taizuquan com o seu irmão, o que aprendeu, segundo as suas palavras, era bastante superficial.

 

Quando o Grão-mestre Cheng tinha quinze anos de idade, encontrou o Grão-mestre Jin Shaofeng vivendo como um eremita num local remoto da montanha. Foi aceite como sendo o aluno número nove. O Grão-Mestre Jin veio da China Continental. A sua especialidade era o Grou Branco do Sul, mas também conhecia Cinco Punhos Ancestrais (Wuzuquan) que incluia os estilos de Grou Branco (Baihequan), Taizuquan, Dazunquan, Luohanquan e Boxe do estilo Macaco (Houquan).

 

O Song Taizu foi o primeiro imperador da dinastia Song (960-1279) e atribui-se a ele a criação do estilo Taizuquan. Dazunquan e Luohanquan pertencem às artes marciais budistas provenientes do templo de Shaolin, e o estilo Macaco foi transmitido tornando-se popular na província de Fujian. Não se conhecem os criadores dos estilos Dazunquan, Luohanquan e Estilo Macaco. Sabe-se que Dazunquan e Luohanquan foram transmitidos nos mosteiros budistas durante a dinastia Tang (618-907) enquanto que o estilo Macaco foi criado à muito tempo. Muitos suspeitam que a sua origem tenha bases no Qigong terapêutico “Desporto dos Cinco Animais.”

 

A maior especialidade do meu mestre era Palma de Borboleta (Hudiezhang) e Dezoito Mãos de Luohan (Shibaluohanshou). Estes dois estilos internos e externos de artes marciais eram os níveis mais avançados de Dazunquan e Luohanquan.

 

O Mestre Cheng praticou durante vinte e três anos com o Mestre Jin Shaofeng. Depois do falecimento do seu mestre, ele e três dos seus colegas ficaram a proteger o túmulo, mantendo-o limpo, durante três anos e só então se separaram. Quando comecei o treino com o Mestre Cheng, ele já tinha cinquenta anos de idade (1961).

 

Existem algumas histórias sobre o Mestre Cheng e eu. Numa tarde, fui visitá-lo e perguntei-lhe porque o mesmo movimento era aplicado de modo diferente por dois dos meus colegas de treino. Ele olhou para mim e perguntou: “Pequeno Yang! Quanto é um mais um?” Sem qualquer hesitação respondi: “Dois.” Ele sorriu e abanou a cabeça dizendo: “Não! Pequeno Yang, não são dois.”

 

Fiquei confuso e pensei que estava a brincar. Ele continuou: “O teu pai e a tua mãe juntos são dois. Depois de casarem, tiveram cinco filhos. Agora, já não são dois, mas sete. Podes ver que um e um não são dois mas sete. A arte está viva e é criativa.

 

Através desta história podem ver que a mentalidade da arte é criativa. Depois de aprender todas as técnicas do seu professor, se nunca tivesse aprendido a criar, o grande compositor Beethoven nunca se teria tornado tão bom. E o mesmo para o grande pintor Picasso. Se não tivessem aprendido a criar, os seus génios nunca teriam sido notados. Deste modo, podem ver que a arte está viva e não morta. Porém, se não tiverem aprendido técnicas suficientes e alcançado um profundo nível de compreensão, desviar-se-ão da via correcta ao criarem e a arte criada será defeituosa. Há um ditado na sociedade de artes marciais chinesas: “O professor leva-nos até à porta; a cultivação depende de nós mesmos.” Além disso, quando aprendem qualquer arte, deverão compreender que a mentalidade da aprendizagem é sentir e ganhar a sua essência. Só quando o vosso coração consegue alcançar a essência da arte é que ganham a raíz. Com essa raíz, poderão crescer e ser criativos.

 

O mestre Cheng contou-me também outra história. Era uma vez um rapaz que foi visitar um ancião e lhe perguntou: “Honorário ancião, ouvi dizer que era capaz de transformar um pedaço de pedra em ouro. É verdade?” “Sim, meu jovem. Tal como os outros, queres também um pedaço de ouro? Vou transformar um pedaço para ti.” O rapaz respondeu: “Oh não! Não quero um pedaço de ouro. O que gostaria de aprender é o truque que usa para transformar as pedras em ouro.”

 

O que pensam sobre esta história? Quando aprendem algo, se não ganharem a essência da aprendizagem, permanecerão na superfície, segurando apenas nos ramos e flores. Porém, se conseguirem sentir a arte profundamente, serão capazes de criar. Sentir profundamente permitir-vos-á ponderar e finalmente compreender a situação. Sem este sentimento profundo, o que verão será apenas a superfície. Este sentimento é a chave da compreensão da teoria da arte.

 

O meu mestre de Grou Branco contou-me outra história quando tinha dezassete anos. Era uma vez um bambu que tinha acabado de brotar do solo. Olhou para o céu e sorriu, dizendo para consigo próprio: “Alguém me disse que o céu é tão alto que não pode ser alcançado. Não acredito que seja verdade.” O rebento era jovem e sentia-se forte. Acreditava que se continuasse a crescer, um dia poderia alcançar o céu. Por isso continuou a crescer e a crescer. Passaram-se dez anos e depois vinte. Olhou de novo para o céu, que continuava para além do seu alcance. Finalmente compreendeu algo e começou a vergar. Quanto mais crescia mais se dobrava. O meu professor pediu-me para recordar sempre “Quanto mais alto o bambu cresce, mais baixo se dobra.”

 

Finalmente, há outra história que afectou bastante o meu modo de pensar sobre a vida. Um dia fui visitar o mestre Cheng depois das aulas. Vi-o sentado à frente da sua casa tocando o huqin (um tipo de guitarra chinesa), o seu instrumento musical favorito. Aproximei-me dele e fiz-lhe uma pergunta. Disse-lhe que me sentia frustrado porque estava a aprender muito lentamente e compreendia apenas muito superficialmente as coisas quando comparado com outros colegas. Ele olhou para mim com uma face carinhosa e disse: “Por que olhas à volta? Se queres lavrar é porque gostas de lavrar. Não te importes se as outras pessoas olham para ti ou não. Tão pouco se és mais rápido ou mais lento que os outros. É assim quando aprendes artes marciais. Simplesmente baixa a tua cabeça e continua a cavar. Não olhes à volta. Se olhares e descobrires que estás à frente ficarás orgulhoso e satisfeito. Se estiveres atrasado, ficarás deprimido. Por isso, baixa-te e continua a cavar. Um dia quando ficares cansado e decidires fazer uma pausa, verás que deixaste todos os outros muito atrás e nem os conseguirás vislumbrar.” Só consegui compreender completamente o que ele me tinha dito anos depois quando cheguei aos Estados Unidos.

 

Através destas histórias podem ver que tipo de pessoa era o Grão-mestre Cheng. Agora, voltemos à história da minha aprendizagem. Uma semana depois do Mestre Cheng me ter dito para aprender Taijiquan, descobri que havia um professor de Inglês e de Taijiquan na Escola Secundária Provincial que ficava perto da minha escola. Decidi ir visitá-lo e implorar para que fosse aceite como seu aluno. Acordei cedo numa manhã e fui ao salão de encontro da sua escola secundária. Vi-o ensinar Taijiquan a cinco alunos. Fiquei a ver de longe durante algum tempo. Quando surgiu uma oportunidade, aproximei-me do Sr. Gao, fazendo humildemente uma vénia. Disse-lhe que tinha um problema com os meus órgãos internos e desejava aprender Taijiquan para o curar.

 

Na altura, o Sr. Gao tinha vinte e nove anos de idade. Tinha aprendido Taijiquan com o seu pai desde os seis anos de idade. Tinha ido para o Taiwan com Jiang Kaishek. Não sabia e não perguntei as origens do seu estilo. Apenas sabia que estava a aprender um estilo Yang. Não tinha nenhuma ideia da linhagem. Na realidade, nem sequer me importava com isso porque o meu objectivo da aprendizagem era recuperar a saúde. E naquela altura, era grosseiro perguntar ao professor o seu passado. Todos os professores eram muito severos, o que era particularmente verdade no caso do Sr. Gao.

 

Depois de me olhar durante alguns instantes disse: “Queres realmente aprender Taijiquan?”

“Sim, mestre,” respondi.

 

“Tens de estar aqui todas as manhãs às seis e meia. Não podes faltar um dia, senão és expulso.”

“Sim, mestre” respondi.

 

Pediu-me então que ficasse quieto. Colocou ambas as palmas no meu peito e lançou-me subitamente a uma distância de quase cinco metros. Pediu para me aproximar e disse: “Conheces agora o poder do Taiji. Agora obedece!”

 

Comecei treinos difíceis com ele. Não estava habituado a isso com o meu mestre de Grou Branco. Surpreendentemente, depois de seis meses a minha úlcera começou a aliviar e logo desapareceu. As simples técnicas de respiração e movimentos da coluna resolveram o problema que me assombrava desde os sete anos de idade.

 

Continuei a praticar com ele quase até aos dezanove anos, altura em que tive de mudar para Taipei para ir para a faculdade. No total, estudei com ele dois anos e meio. Só depois de ter chegado aos Estados Unidos, em 1974, é que compreendi a razão porque tinha uma boa fundação nas artes marciais e uma profunda compreensão. Era por causa do treino do Sr. Gao. O que me surpreendeu bastante foi quando fui para Taipei e comparei o Mestre Gao com os outros instrutores de Taijiquan, o Mestre Gao realçava muito o movimento do corpo e as suas aplicações marciais, enquanto que outros ignoravam todos estes aspectos vitais que eram discutidos nos antigos clássicos.

 

Só depois de 1975, quando a Universidade de Purdue me pediu para dar aulas de Taijiquan para o Departamento de Teatro é que comecei a aprofundar a teoria e pesquisar a essência e o significado de cada movimento. Só então é que me apercebi que o que tinha aprendido com o Mestre Gao era uma preciosa fundação que nunca encontraria noutras fontes. Para conseguir explicar mais a teoria aos meus alunos, comecei a coleccionar os antigos documentos de Taijiquan, a estudá-los, ponderá-los e a experimentá-los. Em apenas alguns anos, comecei a tocar a essência crucial da prática do Taijiquan. "De modo a compilar estas ideias, de forma mais profunda, decidi escrever um livro. É espantoso que depois de completar o livro, a minha compreensão do Taijiquan alcançou um nível mais intenso. O livro intitulava-se “Advanced Yang Style Tai Chi Chuan, Vol. 2 (título actual: Tai Chi Chuan Martial Applications). Para além das minhas expectativas, estes dois livros trouxeram-me reconhecimento popular na sociedade de Taijiquan do Ocidente. Desde então continuo a pesquisar, estudar, ensinar e praticar, com a esperança que a minha compreensão do Taijiquan se torne cada vez mais complexa. Este novo desafio é bastante excitante porque a minha compreensão da teoria chinesa do Qigong está a aprofundar-se cada vez mais. Como é conhecido, o Qigong chinês constitui o fundamento interno de todas as artes marciais chinesas, especialmente as artes internas.

 

No primeiro ano que permaneci em Taipei para estudar física na Faculdade de Tamkang, conheci um novo colega, o Sr. Nelson Tsou. Em poucos meses descobri que ele estava a aprender Punho Longo de Shaolin com o Mestre Li Maoching. Os estilos de Punho Longo focam as capacidades de combate a longa distância e realçam também as aplicações das técnicas de pontapés. Quando o Sr. Tsou descobriu que eu aprendia Grou Branco do Sul, decidimos fazer um teste. Fomos para uma sala de aula e empurrámos todas as cadeiras para o lado para que pudéssemos combater. Depois de alguns assaltos percebi que era muito difícil aproximar-me dele porque ele sabia manter uma boa distância de mim. Porém, ele descobriu que, quando eu entrava na curta distância, era difícil conseguir defender os meus ataques.

 

Depois de alguns combates, pedi que ele me ensinasse Punho Longo. Porém ele sugeriu a fundação de um clube de Gongfu e o convite ao Mestre Li para ser o nosso supervisor e professor. Assim passado apenas poucos meses, o Clube de Guoshu de Tamkang foi fundado. Comecei a aprender o Punho Longo com o Mestre Li. Recordo-me que havia cento e cinco alunos no nosso grupo quando praticámos pela primeira vez.

 

Alguns anos depois fui aceite pela Universidade Nacional de Taiwan em Taipei como aluno do Mestrado em Física. Continuei a estudar com o Mestre Li no Liceu de Jianguo onde ele ensinava e eventualmente tornei-me seu assistente. Num ano apenas, fui convidado a ensinar artes marciais no Liceu de Banqiao nos subúrbios de Taipei. Três anos mais tarde obtive o meu mestrado e fui requisitado para ensinar física na Academia Júnior da Força Aérea Chinesa. Depois de servir um ano, regressei à Faculdade de Tamkang para ensinar física e continuei os meus estudos com o Mestre Li até 8 de Agosto de 1974 – o dia em que parti para os Estados Unidos para realizar o meu doutoramento.

 

O Mestre Li nasceu no dia 5 de Julho de 1926 na cidade de Qingdao (Província de Shandong) onde também cresceu. Mais tarde, quando começou a II Guerra Mundial, foi incorporado no exército onde começou a aprender Punho Longo de Shaolin (Changquan) com Han Qingtang, Louva-a-deus (Tanlangquan) com Fu Jiabin e Sun Bin Quan com Gao Fangxian. O Grão-mestre Han pertenceu à primeira geração de reputados professores do Instituto Central de Guoshu de Nanking. Quando o partido de Jiang Kaishek se retirou para Taiwan, foi convidado a ensinar artes marciais chinesas na Academia de Polícia Central. O Grão-mestre Han ficou também famoso pelas suas grandes habilidades nas técnicas de imobilização das articulações (chaves).

 

Além de Grou Branco de Shaolin, aprendeu também Taizuquan? Este sistema não é bem conhecido. Pode explicar algo sobre Taizuquan?

 

O Grão-mestre Cheng não aprendeu muito Taizuquan com o seu pai. Contudo, acredito que aprendeu um pouco com o seu Grão-mestre Jin Shaofeng. O Grão-Mestre Jin também conhecia Punho dos Cinco Ancestrais (Wuzuquan) que, tal como referimos anteriormente, é constituído por Grou Branco (Baihe), Taizuquan, Dazunquan, Luohanquan e estilo Macaco (Houquan).

 

Tiro esta conclusão porque o Grão-mestre Jin também conhecia Palma de Borboleta (Hu Die Zhang) e também Dezoito Mãos de Luo Han (Shi Ba Luo Han Shou). Estas duas práticas pertencem ao Dazunquan e também às Mãos de Luo Han. Infelizmente, nessa altura, não tinha ainda o nível de habilidade suficiente para aprender e compreender esses dois estilos. Também aprendi um pouco de Garra de Tigre (Huzhua) com ele. Porém, não sei a sua origem. Na verdade, o estilo Garra do Tigre era um estilo popular muito praticado nos estilos do sul.

 

Teve a sorte de ser exposto ao Grou Branco de Shaolin, Taijiquan do estilo Yang e os sistemas de Punho Longo de Shaolin. Olhando para trás, como os vê hoje em dia? Estes sistemas misturam-se bem na prática ou existem diferenças acentuadas na teoria e na prática?

 

Bom, o Grou Branco deu-me uma boa base para compreender ambos os estilos interno e externo, suave e duro. Pois o Grou Branco é um estilo “Suave-Duro” que cobre em simultâneo a teoria e a prática do interno e externo. De facto, devido à minha formação de Grou Branco, consigo compreender claramente a teoria do Taijiquan. Porque é o mesmo Dao (teoria) independentemente do estilo. A única diferença reside na forma da sua manifestação. Aprecio realmente a minha formação em Grou Branco. Sem este estilo, nunca teria tido a compreensão e a experiência para compreender os outros estilos.

 

O Punho Longo fornece-me bons conceitos, estratégias e habilidades de combate a longa distância. Isso é o que falta no Grou Branco. Acredito nisso por causa da minha formação em Punho Longo. A minha compreensão e prática ficaram mais completas. Quanto à manifestação de força, posso facilmente aplicar a parte dura do Grou Branco na prática e teoria do Punho Longo.

 

Além disso, com a compreensão da parte suave do Grou Branco, posso facilmente aplicar a sua teoria e prática no Taijiquan. De facto, escrevi um livro sobre Taijiquan neste ano intitulado “Dr. Yang’s Taijiquan Theory”. O fundamento teórico do livro consiste numa mistura da minha compreensão e experiência do Grou Branco e Taijiquan. Quando as pessoas lerem este livro, rapidamente compreenderão que o Dao das artes marciais é o mesmo.

 

Por vezes diz-se que cada estilo de arte marcial é como uma língua. Se começarem com uma, ela afectará a forma como aprenderão e praticarão a outra. Ao fazerem isto, como na língua, ficaram com um um forte sotaque. Isto será por certo verdadeiro também nas artes marciais. No final, incorporamos o que aprendemos. Na sua prática, qual das artes sente que forma o seu cerne?

 

Tal como referi anteriormente, como aprendi o Grou Branco durante treze anos, que é um período mais longo comparado com os dois outros estilos, considero o Grou Branco como o meu cerne das artes marciais.

 

Agora que comecei a aplicar a teoria do Qigong, compreendo cada vez mais o Taijiquan. Apercebi-me que o cerne das minhas artes tem mudado gradualmente para o Qigong.

 

Quais são as suas razões para estudar artes marciais? Ainda está a aprender sozinho ou com outros professores?

 

O motivo original para aprendê-las já foi explicado antes. Agora, a nova razão ou significado do estudo é para compreender a própria arte. Comecei a compreender o que o meu mestre de Grou Branco dizia: “O que aprendes não é arte marcial. O que aprendes é um modo de vida.” Quão verídico! Esse é o meu actual sentimento.

 

Ocasionalmente aprendo algo de diferentes mestres de Judo para saborear e sentir os seus estilos. Não pretendo dominar outro estilo. Prefiro passar o resto da minha vida tentando alcançar uma compreensão mais profunda destas artes e alcançar uma melhor qualidade na minha prática, em particular no Taijiquan. Isto por causa da minha idade (cinquenta e seis anos). Já não é fácil actuar como um jovem. Continuo a aprender através do estudo dos documentos antigos e através do ensino. Honestamente, os alunos são os meus melhores professores. Aprendi bastante através do ensino.

 

Existe uma grande variedade de técnicas nos sistemas que ensina, incluindo técnicas de mãos desarmadas assim como o uso de armas. Destas artes de combate que aspectos considera mais agradáveis praticar? Porque são tão agradáveis?

 

Na mão desarmada, gosto do Taijiquan porque dá-me um sentimento pacífico e calmante e também porque a essência do Taijiquan é tão profunda. É mais difícil e desafiador manifestar a teoria do Taijiquan em acção.

 

Nas armas, gosto da espada e da lança. A espada é considerada a rainha das armas curtas, enquanto que a lança é considerada a número um das armas longas. O motivo desta crença é porque para dominar estas duas armas, têm-se primeiro que dominar as outras armas. Sem a experiência das outras armas, o que conseguem manifestar na espada e na lança será muito superficial. A teoria de utilização destas duas armas é muito difícil de compreender e conseguir manifestar o seu espírito é ainda mais difícil.

 

No ensino, quais os aspectos mais importantes a focar por um aluno, na sua opinião?

 

A parte mais importante do treino são as rotinas básicas. Estas rotinas formam a base de todas as habilidades a serem desenvolvidas no futuro. Se tiverem uma base firme nestas rotinas, então a manifestação futura da arte não será superficial. Estas rotinas estabelecem uma boa qualidade da arte, sendo as mais importantes: o enraizamento, movimento corporal, manifestação da força e o sentido da presença do inimigo.

 

A seguir, muitos artistas marciais actuais realçam demasiado as formas e ignoram a essência mais importante da arte: o significado de cada movimento. Naturalmente, este significado forma a essência de todo o estilo. Para compreender esta essência, o aluno deve despender bastante tempo na compreensão das aplicações marciais de cada movimento. Deve praticar o suficiente até todas as aplicações se tornarem reflexos naturais, para que possam ser usadas sem pensar.

 

Finalmente, para aqueles alunos que pretendem tornar-se em artistas marciais eficientes ou professores, devem de estudar a teoria da arte. A teoria é como um mapa da cidade. Com este mapa, uma pessoa será capaz de se guiar até ao objectivo. Sem este mapa, um aluno será sempre um aluno. Por isso, sejam humildes e mantenham uma atitude positiva na aprendizagem. O meu mestre de Grou Branco dizia: “Quanto mais alto o bambu cresce, mais baixo se dobra.” Se o estudo e prática de uma arte forem limitadas, então essa arte não é eterna.

 

Depois de tantos anos a ensinar, incluindo seminários por todo o mundo, que observações verificou quanto ao carácter dos alunos? Como lida com a sua multiplicidade?

 

Em geral, os alunos que vivem nos países mais pobres, por exemplo os da Europa Oriental, praticam mais arduamente e os seus espíritos são mais elevados que os dos países mais ricos. Por isso é mais fácil encontrar alunos empenhados nesses países. Porém, a situação está a mudar rapidamente porque há mais liberdade e mais acesso ao estilo de vida ocidental moderno.

 

A seguir, os alunos que vivem em países que possuem uma longa e profunda história parecem permanecer mais tempo no treino. Acredito que isso se deva à disciplina tradicional do seu desenvolvimento cultural.

 

Contudo, o mais importante de tudo é o ambiente de prática e de aprendizagem. Se uma escola tiver um professor bom e empenhado, os alunos, geralmente, também o serão. O professor é um exemplo para os alunos. Além disso, se o professor for humilde e continuar a aprender de fontes diferentes, geralmente os alunos terão também uma mente aberta e estarão dispostos a aceitar novos conhecimentos.

 

Tem algum conselho especial a dar e que gostaria de ter recebido quando começou a estudar com a idade de quinze anos, ou para um praticante já experiente?

 

Sim, aprender mais lentamente e realçar mais a qualidade em vez da quantidade. Segundo, se alguém pretender compreender e alcançar um nível profundo nas artes marciais, deve tratar a arte como um modo de vida. Se a motivação partir do desejo de exibição ou participação em campeonatos, então a arte será superficial. Apesar da aparência externa ser boa, o sentimento da arte estará ausente. Terceiro, não apressem a aprendizagem quando encontrarem um professor. Um bom professor pode conduzir-vos para o caminho correcto no futuro enquanto que um mau professor fará com que acumulem muitos maus hábitos e conduzir-vos-á fora do caminho correcto de treino. Na China há um provérbio: “Um aluno passará três anos à procura de um professor qualificado e um professor passará três anos a testar o aluno.”

 

| publicações

 

Os anos que o Dr. Yang despendeu a ensinar, no seu ginásio e noutros locais à volta do mundo, deixou um profundo impacto no estudo e apreço das artes marciais chinesas. Outra grande influência, que continua a aumentar, são as suas actividades nas publicações. É interessante verificar como o seu trabalho evoluiu na sua capacidade profissional e discutimos esta parte do seu trabalho tanto como discutimos o seu envolvimento como praticante de artes marciais.

 

Como e porquê fundou o centro de publicações da YMAA (YMAA Publication Center)?

 

Os meus primeiros quatros livros foram publicados pela Unique Publications. Antes dos meus livros terem sido aceites, tentei muitos outros editores. A maior parte deles exigiram alterações na estrutura e conteúdo. A razão para tal foi porque pretendiam publicar os livros do ponto de vista de marketing. Porém, muitos dos meus livros são profundos, pelo que o mercado é relativamente pequeno. Para mim, promover a arte é mais importante que ganhar dinheiro. Compreendo, naturalmente, os seus pontos de vista.

 

Parcialmente, a YMAA foi criada para publicar os meus livros que possuem uma discussão teórica relativamente mais profunda que a maior parte dos livros de artes marciais do mercado de massa. Por causa do pequeno mercado destes livros, a YMAA perdeu mais de $700 000 dólares desde 1984 – ano em que foi criada. Para conseguirmos sobreviver, começámos a publicar alguns livros que tinham um mercado maior. Começámos a compreender que para conseguirmos sobreviver, tínhamos que publicar livros com maior mercado, de modo a conseguir também publicar livros de maior qualidade para promover e preservar as artes.

 

As razões porque criei o Centro de Publicações da YMAA (YMAA Publication Center) são:

 

- Para preservar a essência das tradições marciais;

- Para agitar e promover a qualidade de toda a indústria da artes marciais e do Qigong;

- Para conduzir o estudo e prática das artes marciais para um campo mais respeitável de modo a receber um melhor tratamento pela sociedade, tal como o golfe, ténis, basquetebol, etc.. Até agora, a maior parte das pessoas acredita que as artes marciais são apenas para combater. Pelo contrário, a disciplina nas artes marciais é maior que nos outros desportos;

- Para traduzir e comentar os documentos antigos existentes. A maior parte destes documentos está escrita em chinês. Sem a tradução destes documentos, a única fonte de conhecimentos será o professor. Com estes documentos, o aluno será capaz de alcançar a essência das artes que o professor(a) poderá ter ou não.

 

Quando decidiu ramificar e publicar as obras de outros autores?

 

Na realidade, desde a criação da YMAA que tencionava publicar obras de outros autores, desde que a sua qualidade fosse boa e que houvesse mercado. Porém, durante os primeiros anos em que o nome da YMAA era desconhecido, poucos foram os manuscritos submetidos para apreciação. Actualmente é mais fácil porque a YMAA já é reconhecida e tem já uma reputação mundial.

 

Por favor discuta em geral o início do negócio e o que isso conteve? Que dissabores e prazeres é que isso envolveu?

 

Quando fundei a escola YMAA em 1 de Outubro de 1982, não tinha dinheiro para investir. Quando fundei as Publicações YMAA em Janeiro de 1984, também não tinha muito dinheiro. Pedi empréstimos para conseguir publicar os primeiros livros. Mais tarde, quando os rendimentos da escola começaram a aumentar, estes foram transferidos para as Publicações YMAA para a sua sobrevivência e crescimento. As Publicações YMAA continuam muito endividadas. Porém, têm gradualmente crescido de forma independente nos últimos anos.

 

A maior dificuldade foi conseguir dinheiro para conseguir manter as Publicações YMAA. O mais doloroso foi quando dois distribuidores declararam falência e perdemos quase $120 000 por causa deles. Os rendimentos estagnaram. A segunda dor de cabeça foi procurar a pessoa certa para lidar com os aspectos comerciais. Naturalmente que a falta de fundos para fazer o marketing foi sempre o maior problema.

Por outro lado, o mais agradável foi receber incontáveis cartas de apreço, emails e chamadas telefónicas, que muitas vezes me inspiram a ter mais coragem para continuar. Outra coisa agradável é quando se introduz um bom livro no mercado e se tem a alegria de ser bem sucedido. Naturalmente, aprender tanto a partir da escrita tem sido o meu maior prazer pessoal.

 

Como resultado das minhas publicações, fui convidado a apresentar seminários em todo o mundo. As publicações da YMAA tem sido traduzidas em mais de dez línguas diferentes. As escolas da YMAA continuaram a crescer, de apenas algumas, até às actuais cinquenta e seis escolas, espalhadas por mais de dezasseis países. Estas alegrias estão para além das palavras.

 

Quais foram os maiores problemas que enfrentou como editor de livros e cassetes de vídeo? Por exemplo, lidando com a romanização de termos, edição e distribuição?

 

No início, incluir textos em chinês era sempre uma grande dor de cabeça. Não havia fontes chineses disponíveis. Tinha de os escrever com pincel chinês e depois tirar uma foto. Em seguida, tinha de cortar e colar os caracteres necessários. Que romanização deveria usar? O sistema tradicional ou o novo sistema Pinyin? Actualmente, estes problemas foram resolvidos. Contudo, a distribuição continua a ser um grande desafio porque não temos muito capital para investir em marketing. Só esperava que maiores vendas fossem geradas através do passar da palavra. Na verdade, a boa reputação dos produtos da YMAA tem sido sempre a sua maior publicidade.

 

Quando compara os seus primeiros livros com os títulos mais recentes, o que pensa ao vê-los lado a lado, em particular sob o ponto de vista de edição e design?

 

Naturalmente que têm sentimentos completamente diferentes. Actualmente, tudo é mais profissional. Antes de 1992 tinha de fazer tudo sozinho, desde a capa, trabalho de corte e colagem, contactos com a gráfica e distribuição. Claro que tinha de pagar a um editor para corrigir o meu “chinglês”! Contudo, todos esses produtos foram feitos por um amador como eu. Agora tudo é diferente. Temos designers profissionais a criar as capas, editores profissionais a editarem os livros, um revisor para apreciar os manuscritos submetidos e um bom distribuidor (National Book Network) para distribuir os nossos livros. Os temas abordados variam desde os meus até aos dos outros autores.

 

O que espera conseguir nos próximos dez anos com as publicações YMAA?

 

Primeiro é conseguir mantê-lo a funcionar. Depois, continuar a crescer de oito livros publicados por ano para trinta livros por ano. Além disso, entrar no mercado de produção de DVD e continuar a introduzir boas artes orientais ao público em geral. Gostaria também de continuar a melhorar a qualidade dos produtos, não só no design e edição mas também no seu conteúdo.

 

Aqui termina a segunda parte (e parte final) da entrevista com Dr. Yang Jwingming sobre o seu estudo e prática das artes marciais, e carreira como editor. Gostaria de agradecer pessoalmente ao Dr. Yang por partilhar tanta informação e por permitir-nos publicar muitas fotografias inéditas. Espero que o conteúdo desta entrevista possa adicionar uma maior compreensão geral das tradições marciais chinesas, e dar novas visões sobre a vida de um homem excepcional que tanto dedicou a este campo. O seu trabalho reflecte o conceito de “o civil e o marcial” (wen wu), simbolizado no logo do jornal.

 

Agradecimentos especiais aos representantes da YMAA, David Ripianzi e Carol Shearer-Best pela gentil ajuda no processo da entrevista, em particular na comunicação e assistência na edição e material de ilustração.

 

 

 

 

 

bottom of page